O “SER” CRIANÇA

Compreender o que se passa no “mundo da infância” na contemporaneidade é uma tarefa (árdua e complexa) que nos demanda uma análise das suas condições de emergência e proveniência. Exige-nos um olhar para o lugar que a criança tem ocupado na sociedade ocidental em várias épocas de seu desenvolvimento. Leva-nos a indagar que concepções e conceitos foram sendo construídos e abandonados ao longo dos anos sobre o “ser criança”.

Para tal reflexão será preciso uma mirada retrospectiva. Tentar compreender o contexto histórico, social e geográfico de onde essas concepções e conceitos provêm e quais são as suas condições de emergência dentro desses contextos. Empreender uma análise que leve em conta a história dessas construções pode nos dar importantes pistas sobre o “ser criança” nos dias de hoje e como intervir aí de modo mais profícuo. Verificamos que a história da infância guarda semelhanças com a história da própria Psicologia, que, no entender de Garcia-Roza (1975), não tem nada de contínua e evolutiva, sendo, ao contrário, descontínua e não progressiva. Como salientou Foucault (1987) a equivocada idéia de uma historicidade evolutiva constituiu-se de forma tão profunda que ainda hoje parece para muitos se tratar de uma evidência. Contudo, Foucault insiste que o entendimento de uma história em termos de evolução está ligada a um determinado modo de funcionamento do poder, modo este que Souza (2004) aponta como aquele que tenta sempre fazer valer suas escolhas, suas ideologias, suas concepções, contando uma História progressiva e racionalista como sendo “a História”. E “nesse movimento o poder sufoca outras escolhas, apaga outras formas de relato histórico, não tolera as dispersões, evita aceitar que há rupturas, dissensos, paradoxos, recuos e saltos na História” (SOUZA, 2004, p.14). Estaremos, portanto, atentos a esse fato durante o processo de elaboração desta monografia.

Breve Relato Histórico

A palavra infância é originária do latim infans que significa aquele que não fala. A etimologia da palavra nos permite supor desde já que a representação do que é uma criança em determinada sociedade, em determinado momento de sua história, pode ter consequências que concernem à percepção do infante como alguém considerado como capaz ou como incapaz de expressão de desejos. Sob a perspectiva do adulto, isso pode redundar em atitudes de descaso ou negligência pelo que a criança expressa ou mesmo o silenciamento dela antes que tente dizer alguma coisa. Ao observarmos diferentes épocas de nossa história poderemos perceber que houve inúmeras transformações dos modos de “ser” e “perceber” a infância ao longo do tempo. Philippe Ariès (1981) demonstra que na Idade Média não havia uma separação clara entre o que seria adequado para crianças e o que seria específico da vivência dos adultos. A preocupação com o tratamento diferenciado se dava apenas nos primeiros anos de vida, enquanto ainda dependiam diretamente dos seus cuidadores. As crianças passavam desta fase, de pequenos dependentes, direto para o mundo dos adultos. E era neste contato direto com pessoas mais velhas que as crianças desenvolviam seus potenciais e seus conhecimentos. Contudo, essas pessoas mais velhas não eram necessariamente seus familiares. As crianças, muitas vezes, aprendiam observando, auxiliando, ou servindo como aprendizes em casas de outras famílias. É curioso que até por volta do século XII, na sociedade européia medieval, não se retratavam as crianças em quadros e, quando o faziam, elas apareciam retratadas com trajes semelhantes aos dos adultos da classe social a que pertenciam. As crianças eram vistas como pequenos adultos e, portanto, não havia preocupação com roupas ou demandas infantis Conforme Ariès, a expectativa de vida que se tinha em relação às crianças, era muito baixa e, talvez, por isso, a falta de investimento afetivo nesta fase de desenvolvimento do ser humano. A sociedade não reconhecia a infância enquanto um período de vida inerente ao ser humano, pois a criança era considerada como um “adulto em miniatura”. Dessa forma, os modos de vestir, as conversas, os jogos e as brincadeiras e até o trabalho realizado pelas crianças não as distinguiam do “mundo” dos adultos. Não existia separação entre assuntos de adultos e crianças. Não havia segredos. As crianças efetivamente participavam da vida como se fossem adultos, ouvindo e participando de tudo o que pertencia à vida adulta. Não havia assim uma definição entre o significado de ser criança e ser adulto. Isto não quer dizer que havia negligência ou descaso dos pais às especificidades do desenvolvimento infantil, o que ocorria de fato era que não havia a idéia da infância como uma fase especial do desenvolvimento humano, que precisava ser cuidada com atenção diferenciada.

Os sentimentos reservados às crianças em seus primeiros anos de vida, eram os paparicos enquanto ela ainda era engraçadinha, que servia para divertir as pessoas. Quando morriam, logo se esperava que outra criança a substituísse. Ela não tinha um lugar na vida familiar. “A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato” (ARIÈS,1981, p.10). A partir do século XVI, começaram a ocorrer mudanças na forma como as pessoas percebiam, tratavam e se relacionavam com as crianças. Essas mudanças coincidem com a constituição da família burguesa, onde surge a valorização dos laços familiares e também o fortalecimento da fábrica mecanizada, difundindo-se a idéia de que era preciso preparar, habilitar a mão-de-obra para as novas demandas do sistema produtivo (sistema de fábricas). Todavia, para isso, se fazia necessário uma educação “adequada” para os sujeitos que futuramente seriam esses trabalhadores. Naquela época, as mudanças educacionais tiveram grande influência na nova percepção do “ser” criança. Segundo Rocha (2001) a escola ascende enquanto organização social justamente para responder às demandas de transição da sociedade medieval para a sociedade burguesa, na qual deveres e disciplina são impostos a todos os indivíduos (inclusive às crianças). Assim, o modelo educacional passou a ter como base uma política de separações, de especificidades, valendo-se de métodos da ordem do trabalho, tendo em vista que sua ação remetia à produção de sujeitos em conformidade com a nova sociedade cronológica e disciplinada do mundo fabril e, posteriormente, do mundo industrial. Construiu-se a idéia de que a criança passa por um estágio de imaturidade numa dimensão física e mental, e que ainda está em desenvolvimento e sendo assim, era preciso proporcionar a ela cuidados especiais. E então, inicia-se o processo de configuração de um espaço específico, o de “ser criança”, deixando esta de ser vista como uma miniatura de adulto. Como corolário dessa necessidade de uma educação ajustada ao ideário burguês, vê-se o movimento das famílias em buscar especialistas para que estes pequenos pudessem se desenvolver de acordo com os moldes propostos. À família cabia a responsabilidade de supervisionar esta fase educacional. Assim sendo, a família passa a se organizar em torno da criança e das perspectivas futuras nela contidas. Perdê-la a partir de então passou a representar um terrível sofrimento. A partir desse momento acontece, então, a separação do universo das crianças daquele dos adultos. Ao invés dos ensinamentos de hábitos e profissões pelo convívio, as crianças são enviadas para as escolas. Apesar dessa mudança que aparentava apenas ser positiva, no reconhecimento da infância como uma etapa específica na vida dos sujeitos e por isso deveria ser levada em consideração, percebe-se também que nessa época a criança passa a receber atenções diferenciadas, mas, exageradamente passa a ser vista como um ser inocente, fraco, imperfeito, indicando uma mudança de um extremo ao outro no tratamento das mesmas. Segundo Peres (1999), a imposição de castigos era forte aliada para o adestramento para a vida adulta. Era a concepção de que esses pequenos só seriam educados com uso da força do adulto. Apesar desses métodos contraditórios de cuidado e castigos, ainda assim, houve um avanço sobre as concepções referentes à infância, pois a criança passa a ser considerada um ser com necessidades e desejos específicos, necessitando assim de uma educação específica. Com essa nova premissa, a separação entre criança e adulto, surgem os “segredos”, isto é, assuntos que passam a ser conhecidos apenas pelos mais velhos e que as crianças não devem ter acesso. E até os dias de hoje ainda perdura essa concepção de que as crianças precisam de cuidados especiais e devem estar resguardadas de algumas informações que possam lhes ser nocivas, para que assim, possam se desenvolver como indivíduos plenos. Talvez ainda hoje se proponha dar exclusivamente à criança aquilo que é de criança (a César o que é de César?). Mas o que podemos observar em algumas situações específicas é que há um retorno a antigas concepções, isto é, ao invés de mais resguardadas, as crianças estão cada vez mais próximas do mundo adulto, abandonadas à própria sorte, seja pela ausência dos pais, pela precarização das escolas, pelo trabalho precoce ou pela presença exagerada da mídia, que as encharca de informações e de apelos ao consumo. No contexto brasileiro na atualidade podemos identificar no documento “Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil” (Brasília, 1998), que a política educacional mantém em suas bases a idéia de infância como um momento especial na vida de todos os sujeitos:

Podemos daí inferir que as crianças organizam e produzem diversas formas de brincadeiras, atividades lúdicas de entendimento em relação ao mundo, procurando entendê-lo e transformá-lo. Desde bebê ela brinca e, num processo contínuo e cada vez mais complexo, desenvolve habilidades motoras, cognitivas, afetivas e sociais, expressa-se de diversos modos, até poder constituir-se a linguagem (falada ou escrita) como a sua principal dimensão expressiva. Sendo assim, podemos pensar que o uso de técnicas diferenciadas na análise de crianças, permite desvendar / desvelar, através da linguagem infantil e de outras formas de expressão, o que provoca seu sofrimento psíquico. Contudo, conforme frisamos anteriormente, esse processo de análise, não pode estar alheio ao contexto histórico, social e econômico em que vivem essas crianças que nos chegam para serem atendidas, portando as mais diversas demandas.

Rubia Landi