O sonho como importante campo de estudo

No processo de desenvolvimento da Psicanálise, Freud buscou constantemente aprimorar tanto a teoria quanto o tratamento oferecido aos seus pacientes. A partir de 1900, desenvolveu o estudo intitulado “A interpretação dos sonhos”, o qual passou a ocupar um lugar especial na teoria psicanalítica.

A descoberta de Freud de que os sonhos têm um conteúdo psicológico fundamental revolucionaram o estudo da vida psíquica. Antes os sonhos eram tidos como meros efeitos provocados por estímulos fisiológicos. Freud descreve esta pesquisa como a mais valiosa de todas as descobertas que teve a felicidade de fazer e isto lhe dava a confiança de que descobrira o caminho para conseguir sucesso no tratamento dos pacientes. Era, com efeito, uma abordagem válida ao estudo das neuroses.

A razão da relevância deste tema, se dá pelo fato de que em nenhum outro fenômeno da vida psíquica normal, os processos inconscientes da mente são tão claramente revelados e acessíveis ao estudo. É também o melhor caminho para o estudo das neuroses, porque os sonhos dos neuróticos não diferem dos sonhos das pessoas normais. O interesse de Freud pelos sonhos teve origem no fato de constituírem eles processos normais, com os quais todos estão familiarizados, mas que exemplificam processos atuantes na formação dos sintomas neuróticos. “Freud chegou a dizer que a diferença entre a saúde e a neurose vigora apenas durante o dia, não se estende à vida onírica” (GARCIA-ROZA, 1984,p.64). Assim, os sonhos não são apenas a via privilegiada de acesso ao inconsciente, eles são também o ponto de articulação entre o normal e o patológico.

Os sonhos são um importante campo de estudos, como conhecimento puro da produção mental, pois é uma atividade que se produz quando o sujeito está afastado do mundo exterior, é uma produção inconsciente e, sendo uma atividade normal, nos proporciona uma oportunidade de conhecimento da ritmicidade com que o ego se aproxima e se afasta do mundo exterior. O fato é que o estudo dos sonhos não proporciona simplesmente a compreensão dos processos e conteúdos mentais inconscientes em geral. Revela, principalmente, os conteúdos mentais que foram reprimidos ou de qualquer forma excluídos do consciente pelas atividades defensivas do ego. Freud com este trabalho demonstra que o sonho é o guardião do dormir, na medida em que ele procura fornecer ao sujeito uma satisfação independente da realidade exterior. Graças a esse fenômeno natural a pessoa consegue continuar dormindo enquanto acontece um conflito entre o desejo de dormir e o desejo proveniente do inconsciente, que luta para emergir.

Os Sonhos como via de acesso ao inconsciente.

As descobertas de Freud (1900/1987) trouxeram os sonhos para o campo da Psicologia e demonstraram que estes são realizações de desejos, disfarçados ou não, satisfeitos em pleno campo psíquico. Por meio da análise dos sonhos, mostrou a existência do inconsciente e apresentou os sonhos como um instrumento revelador da personalidade humana. O sonho é o resultado final de uma atividade mental inconsciente. Durante esse processo fisiológico, podemos observar uma experiência subjetiva que aparece na consciência durante o sono e que, após o despertar, chamamos de sonho. Para Freud (1900/1987), a essência do sonho é a realização de um desejo infantil reprimido. Assim, ele proclama no tópico intitulado “Realização de Desejos” (1900/1987, p.506): “o desejo que é representado num sonho tem que ser um desejo infantil. No caso dos adultos ele se origina no Ics”. Nem sempre é fácil reconhecer esses desejos nos sonhos que recordamos ao acordar. Alguns se apresentam abertamente, mas em outros parece impossível reconhecer esses desejos implícitos. O desafio dos analistas será buscar este conteúdo que não está claro, mas que sabemos existir escondido no inconsciente.

Na prática, a palavra sonho designa o que Freud (1900/1987) chamou de sonho manifesto. O sonho manifesto é a experiência consciente, durante o sono, que a pessoa pode recordar depois de despertar. Esta experiência é composta de vários elementos e estes elementos são designados como conteúdo manifesto do sonho, representado como imagem visual. Os pensamentos e desejos inconscientes que ameaçam acordar a pessoa são denominados conteúdos latentes do sonho e as operações mentais inconscientes por meio das quais o conteúdo latente do sonho se transforma em sonho manifesto, denomina-se de elaboração do sonho. O conteúdo latente tem três fontes principais: a primeira compreende as impressões sensoriais noturnas, as quais invadem constantemente os órgãos sensoriais daquele que dorme e, neste caso, às vezes participam de alguns momentos iniciais do sonho. O que não significa que todos os estímulos sensoriais noturnos influenciam no sono, pelo contrário, a maioria dos estímulos sensoriais não perturbam o sono e uma percepção sensorial perturbadora pode acordar uma pessoa e não participar do conteúdo latente de um sonho.

A segunda fonte do conteúdo latente do sonho compreende pensamentos e idéias relacionadas às atividades e preocupações da vida normal no estado de vigília, e que permanecem inconscientemente ativos em sua mente durante o sono. Se a pessoa sonha ao invés de acordar, esses pensamentos e idéias atuam como parte do conteúdo latente do sonho. Incluem toda variedade de interesses e recordações comumente acessíveis ao ego. São os chamados restos diurnos, porém essas atividades da vida diurna por si só, não são capazes de formar um sonho.

Na ilustração de Freud o desejo inconsciente é como o capitalista do sonho, é quem proporciona a energia principal para construí-lo (representante da pulsão) e o resto diurno é o sócio industrial, só tem importância à medida que oferece ao desejo inconsciente um transporte para sua veiculação.

A terceira fonte do conteúdo latente compreende um ou vários impulsos do id que, ao menos em sua forma infantil original, são banidos pelas defesas do ego da consciência ou da gratificação durante o estado de vigília. As defesas mais importantes e de maior alcance do ego contra o id são as que se formam durantes as fases pré-edipianas e edipianas. Por conseguinte a parte do conteúdo latente do sonho, que deriva da reprimida é geralmente infantil. Consiste em desejos apropriados à primeira infância ou dela provenientes conforme declara Freud (1900/1987, p.535): “Nossa teoria dos sonhos encara os desejos originários do infantil como força propulsora indispensável para a formação dos sonhos”.

O conteúdo latente trata-se de um impulso ou de impulsos da parte reprimida do id e tem duas origens: uma no presente e a outra no passado. No processo de um sonho, um desejo se realiza, se constrói. O que se refere aos conteúdos de desejo de um sonho é a confluência de dois níveis de experiências: a primeira delas, às circunstâncias externas do dia a dia atual ou anteriores e a segunda às circunstâncias profundas infantis. Propriamente falando, o significado de um sonho só pode ser referir ao conteúdo latente. O sonho tem um sentido oculto, já que há um disfarce do afeto inconsciente para que possa aparecer na consciência, e muitas vezes um pensamento que é desagradável, como uma preocupação, pode servir ao sonho para chegar à consciência, disfarçando um desejo inconsciente. O conteúdo manifesto nunca é o desejo do inconsciente, ele é distorcido. O sonho engana, por isso é campo de interpretação, ainda que aparentemente represente o que desejamos. O conteúdo onírico é de suma importância para a compreensão do inconsciente de quem o produz. Por isso, a Psicanálise vê com tanta atenção este produto da mente, que é o sonho. O conteúdo manifesto é uma fantasia que simboliza o desejo ou impulso latente. O impulso ou desejo perturbador do id se gratifica com a fantasia, perdendo assim parte de sua urgência e, portanto, o poder de despertar a pessoa que dorme. Podemos ver em Brenner (1972) que Freud considerou o sonho manifesto como “formação de compromisso”, pois os vários elementos representados poderiam ser considerados um compromisso entre as forças opostas do conteúdo latente do sonho de um lado e as defesas do ego do outro, ou seja, os desejos do Ics que querem emergir e os do Pcs que querem manter o sono.

O conteúdo latente, que é o iniciador do sonho bem como sua fonte principal de energia psíquica, faz força todo o tempo para ir para a consciência. Ele só pode exercer pressão constante a procura de gratificação, uma vez que esta é a própria natureza dos impulsos instintivos, dos quais é um derivativo. A catexia, associada ao elemento do id no conteúdo latente, ativa o aparelho psíquico que passa a realizar a elaboração do sonho, conseguindo uma descarga parcial por meio da imagem da fantasia que satisfaz o desejo e constitui o sonho manifesto. A parte essencial do conteúdo latente é a que provém do id reprimido e esta parte é a que contribui com a maior parcela de energia.

As defesas do ego representam um papel muito importante no disfarce do conteúdo latente do sonho, bem como para tornar inteligível o sonho manifesto. Essas defesas afetam as diferentes partes do conteúdo latente dos sonhos. A oposição das defesas do ego a esta parte do conteúdo latente do sonho é o principal responsável pelo fato de ser o sonho manifesto frequentemente incompreensível e praticamente irreconhecível como uma imagem da fantasia de satisfação dos desejos. O sonho é muito importante para a análise porque na associação livre, os atos falhos acontecem quando estamos em vigília e a censura está mais forte As defesas do ego lutam para que a parte do conteúdo latente do sonho que deriva do reprimido não penetre na consciência. Durante a noite, no sono, as defesas estão mais relaxadas e apesar dos esforços, o conteúdo latente consegue penetrar na consciência, surgindo em forma de sonho manifesto. As defesas do ego não conseguem impedi-lo e então interferem distorcendo de maneira irreconhecível os elementos dos desejos inconscientes.

O disfarce às vezes torna o aspecto de satisfação do desejo do sonho manifesto irreconhecível, parecendo tratarem-se de vários fragmentos sem relação aparente, sem qualquer sentido. Tampouco parecem representar a realização de um desejo. Contudo, na concepção freudiana, o sonho é um produto da atividade do Inconsciente e que tem sempre um sentido intencional, a saber: a realização ou a tentativa de realização - mais ou menos dissimulada, de uma tendência reprimida. “A censura entre o Ics e o Pcs, cuja existência os sonhos nos obrigaram a supor, merece ser reconhecida e respeitada como a guardiã de nossa saúde mental (FREUD 1900/1987, p.517). O trabalho onírico consistirá na transformação das representações inconscientes, inaceitáveis para a parte consciente do Ego, em outras representações que servirão de disfarces ocultadores das representações originais. O sonho se produz por ação fundamental de dois mecanismos, o deslocamento e a condensação. O deslocamento consiste em transferir o acento, o interesse, a energia de uma representação a outra menos carregada, como por exemplo, no sonho há um deslocamento de afeto inconsciente que distorce com o resto diurno, coisas que vivenciamos durante a vigília e se transforma em sonho. É um fenômeno fundamental da substituição e faz parte da estrutura de qualquer sintoma. Freud se refere ao deslocamento como uma alusão e portanto principal efeito pelo qual um determinado conteúdo parece descentrado e estranho. Outro mecanismo, a condensação, o sonhador tem a sensação de que o sonho foi longo, mas na verdade é em um mínimo de tempo que se produz o sonho com muito conteúdo. Uma representação única concentra em si várias cadeias associativas produzidas por deslocamento. É responsável pelo sintético, pela pouca expressão consciente de um sintoma em comparação com o que ele oculta.Um sonho é uma articulação de várias estruturas condensadas, embora em seu relato possa parecer simples.

É possível que uma imagem represente vários elementos latentes, que é a própria condensação, isto é, o sonho manifesto é uma versão altamente condensada dos pensamentos , sensações e desejos que compõem o conteúdo latente do sonho Interpretar um sonho será, portanto, decodificá-lo, voltar a encontrar aquele conjunto representacional oculto, descobrindo assim a rede de sua organização interna. É preciso atentar para o fato de que todo sonho é interpretável, mas não ele todo. O próprio sonho é uma interpretação, na medida em que, ao contar um sonho, algo se produz no sonhador. Para que um sonho seja interpretado é necessário que não se tente entendê-lo de uma só vez, na sua totalidade, pois ele, muitas vezes, apresenta-se muito confuso no primeiro momento. Deve-se dividi-lo em partes de acordo com o contexto do paciente e ir decifrando-o lentamente sem adotar um critério cartesiano, pois o mesmo fragmento de um conteúdo pode ocultar um sentido diferente quando ocorre em várias pessoas ou em situações diferentes O trabalho realizado pela análise de interpretação dos sonhos busca desvelar os conteúdos mentais, pensamentos e experiências que foram reprimidos ou recalcados, excluídos da consciência pelas atividades de defesa do ego e superego e enviadas para o inconsciente. A parte do id cujo acesso à consciência foi impedido, é exatamente a que se encontra envolvida na origem das neuroses. Portanto, o interesse de Freud pelos sonhos teve origem no fato de constituírem eles processos normais, com os quais todos estão familiarizados, mas que exemplificam processos atuantes na formação dos sintomas neuróticos. Surge o sonho, via de regra, numa zona congestionada do entrelaçamento dos campos, de onde resulta que seu conteúdo exprime regras atinentes a distintos temas psíquicos simultaneamente. Por isso não possui um só sentido latente, mas uma rede de significações emocionais. Com o forte trabalho da resistência, o sonhador muitas vezes tem a tendência a se esquecer um sonho e quase todos assim se perdem.

Ponto Polêmico

Pode-se apontar pelo menos um dos aspectos da teoria sobre os sonhos que desperta polêmica. Como podemos entender que os sonhos são realizações de desejo se temos sonhos muito desagradáveis? Freud procura clarificar esta questão dando sinais de que o desejo reprimido, por vezes se apóia em situações penosas que vivenciamos e que possam surgir modificados nos sonhos, já que esses desejos inconscientes muitas vezes não devem aparecer.

Não se esgotam por aqui as inúmeras considerações a respeito da obra de Freud sobre os sonhos, mas me aterei no momento a mais uma questão específica, aquela que se refere aos sonhos de angústia. Alguns teóricos, opositores das idéias de Freud sobre os sonhos, discordaram de que os sonhos eram realizações de desejos, já que alguns sonhos apresentavam conteúdo manifesto que representa desprazer para quem sonha. Ocorre que, por vezes, acontece uma falha nas defesas do ego e um conteúdo latente do sonho, os desejos inconscientes de origem infantil, consegue penetrar na consciência, isto é, no conteúdo manisfesto do sonho de forma direta, com pouco disfarce. Para que isto se realize faz-se necessário que tenha acontecido recalcamentos e que o desejo suprimido tenha adquirido força suficiente para transpor as barreiras.

A teoria dos sonhos de angústia faz parte dos estudos da psicologia das neuroses, onde os sintomas são o produto de um compromisso entre os sistemas ics e pcs que por um tempo dão ao ics, um escoadouro para a descarga de sua energia, dando-lhe a oportunidade de um pequeno escape e possibilitam ao pcs manter até certo ponto o ics sobre controle. Em minha experiência como psicóloga, passei a observar em crianças menores de 7 anos, o que Freud (1900/1987, p.503) diz sobre o fato de que nas crianças encontramos “sonhos de desejos não distorcidos”. Ao ouvir os relatos dos sonhos, pude verificar a existência dos elementos latentes, de desejos edipianos presentes em seus discursos. E além disso, também me chama atenção o fato de como elas, muitas vezes, ao relatarem seus sonhos através da linguagem oral ou expressão gráfica, misturam elementos de fantasias aos elementos do sonho manifesto, modificando por vezes, as representações do conteúdo manifesto, as imagens, e mesmo assim continuam nítidos alguns conteúdos latentes. E a cada vez que relatam o sonho, novos elementos vão surgindo. Sabemos que da mesma forma que o sonho, a fantasia também tira seus conteúdos das histórias do sujeito e da realização de desejos inconscientes, podemos considerar a afirmação de Freud de que para encontrar o sentido de um sonho deve-se percorrer o caminho que nos leva do conteúdo manifesto aos pensamentos latentes e incluir nesta peregrinação os conteúdos das fantasias que se misturam no discurso infantil. Apesar de parecer mais fácil reconhecer o conteúdo latente nos sonhos das crianças, pois com menos defesas, menores serão as deformações, devemos também considerar que a criança muitas vezes se apresenta como representante das neuroses parentais e os conteúdos latentes do inconsciente da criança podem se aproximar do Ics dos pais. O trabalho de análise com crianças pode ser muito produtivo se o terapeuta experiente matem uma escuta atenta.